quinta-feira, 18 de abril de 2013

O Cortiço





Análise do romance “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo*


Os temas centrais da obra são a ambição e a desigualdade social no Brasil do século XIX, analisadas sob uma perspectiva naturalista e determinista.

Com relação ao enredo da obra, temos os seguintes estágios da ação:

- Exposição: É marcado pela personificação feita ao cortiço por meio do fragmento a seguir: Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.” – Cap. III, p. 35

- Complicação:
 Na obra “O Cortiço” é possível encontrar diversos momentos em que ocorrem complicações. Um deles é quando o vendeiro se vê perturbado com a presença de Bertoleza. O fragmento a seguir mostra bastante essa questão:
(…) o vendeiro ia e vinha no quarto, sem achar uma boa solução para o problema. Ora, que raio de dificuldade armara ele próprio para se coser!... Como poderia agora mandá-la passear assim, de um momento para outro, se o demônio da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a gente na estalagem sabia disso? E sentia-se revoltado e impotente defronte daquele tranquilo obstáculo que lá estava embaixo, a dormir, fazendo-lhe em silêncio um mal horrível, perturbando-lhe estupidamente o curso da sua felicidade, retardando-lhe, talvez sem consciência, a chegada desse belo futuro conquistado à força de tamanhas privações e sacrifícios! (…)” (Grifos meus)
– Cap. XXI, p. 188

- Clímax:
 O clímax da história é marcado pela briga entre Piedade e Rita Baiana: quando as duas brigam violentamente por causa de Jerônimo - marido de Piedade que está apaixonado por Rita -, há o envolvimento de todo o cortiço e a disputa entre brasileiros e portugueses fica evidente. No mesmo momento em que os brasileiros e portugueses iniciam uma briga para defender as suas respectivas
conterrâneas, o cortiço é invadido pelos moradores do cortiço vizinho, que chegam armados de paus e navalhas com a intenção de vingar a morte de Firmo. Uma outra briga ainda mais violenta que a primeira se inicia e só termina quando todos os moradores se dão conta de que há um incêndio no cortiço. Para exemplificar o episódio, pode-se destacar os seguintes fragmentos da obra:
a) “Ouviam-se, num clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil. De vez em quando, o povaréu, que continuava a crescer, afastava-se em massa, rugindo de medo, mas tornava logo, como a onda no refluxo dos mares. (…) E o rolo fervia.” 
– Cap. XVI, p. 163

b) “(...) E a batalha principiou. (...) Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os voa-pés. (...). De parte a parte esperavam que o cansaço desequilibrasse as forças, abrindo furo à vitória; mas um fato veio neutralizar inda uma vez a campanha: imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das casas do fundo, o número 88. E agora o incêndio era a valer (...)” – Cap. XVII, p. 164

- Desfecho: O cortiço original se transforma em habitação para gente de melhor classe social; João Romão conquista a confiança de Miranda para casar-se com Zulmira; e Bertoleza, vendo-se traída duas vezes por João Romão, suicida-se na cena final do livro, como podemos verificar no fragmento abaixo: 
“Bertoleza (…) recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. E depois embarcou para frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.”  – Cap. XXIII. p. 207
Neste fragmento verifica-se o drama do suicídio de Bertoleza: tudo acaba justamente como João Romão imaginava, uma vez que, para ele, Bertoleza deveria morrer a fim de que se concretizasse seu casamento (de João Romão) com a filha de Miranda. Assim ocorre: ela se mata, rasgando o próprio ventre com a mesma faca que limpava os peixes para alimentar João Romão.
 Classificação do desfecho:
- Fechado
- Previsível



Com relação aos personagens da obra, temos:
- Principais: o próprio cortiço, João Romão, Jerônimo, Bertoleza, Rita Baiana, Miranda.
- Secundárias: Dona Estela, Zulmira, Botelho, Piedade de Jesus, Leocádia, Bruno, Augusta, Alexandre, Domingos, Agostinho, Albino, Andréa, Das Dores, Delporto, Dona Isabel, Firmo, Florinda, Francesco, Freitas de Melo, Henrique, Isaura, João da Costa, Juju, Leandra, Léonie, Leonor, Libânia, Libório, Luís, Manduca, Manuel, Marciana, Marianita, Nhá Dunga, Pataca, Paula, Pombinha, Pompeo,  Porfiro, Roberto Papa-Defuntos, Seu Bento, Valentim, Zé Carlos. 
- Protagonistas: o cortiço e João Romão.  
 
- Planas: Bertoleza, Zulmira, Augusta, Alexandre, Agostinho, Albino, Andréa, Das Dores, Delporto, Francesco, Freitas de Melo, Isaura, João da Costa, Juju, Leonor, Libânia, Libório, Luís, Manduca, Manuel, Marianita, Nhá Dunga, Pompeo, Porfiro, Roberto Papa-Defuntos, Seu Bento, Valentim.
- Redondas: o próprio cortiço, Jerônimo, João Romão.


Podemos caracterizar os personagens principais da seguinte forma:

cortiço como protagonista é um exemplo de personificação de algo que é inanimado e abstrato. Caracteriza-se assim por haver referências no texto como:
“Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia...”; “Eram cinco da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas”. 
Dessa maneira fica evidente o quanto o meio era
o delimitador e orientador das ações humanas. O cortiço era o principal e único responsável por todas as circunstâncias nele existentes referentes aos hábitos e atitudes de seus moradores.


João Romão representa o português que veio para o Brasil e enriqueceu. É extremamente trabalhador. É amigado com Bertoleza e junto com ela constroem a sua fortuna. É movido por inveja e uma ambição sem limites que o torna capaz de trapaças, pequenos e médios furtos. Visto que os seus princípios são baseados em valores materiais, foi capaz de trair àquela que se dedicou a vida inteira por ele. Porém, mesmo sendo um homem de origem simples, é capaz de reconhecer que o refinamento é algo importante e, muitas vezes, também parte do negócio para enriquecer mais.

Jerônimo 
representa o Português que veio ao Brasil e se igualou ao malandro carioca. Português de quarenta e cinco anos, alto, espadaúdo, barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados, pescoço de touro e cara de Hércules, olhos humildes; cavouqueiro; marido de Piedade. Homem de hábitos regrados, muito trabalhador e muito econômico. Vivia muito bem com sua esposa. Se tornou funcionário de confiança de João Romão. E entregando-se aos encantos de Rita Baiana, nunca mais recuperou seus originais princípios. Apesar de não ter má índole se perdeu com os valores e com eles as medidas dos limites e por causa de seu novo amor foi capaz de matar Firmo e de abandonar sua esposa e suas responsabilidades. Termina infeliz e pobre ao lado daquela que já não era tão encantadora como antes.


Bertoleza representa os escravos. É trabalhadora, companheira e totalmente submissa a João Romão. Apesar de nunca ter sido alforriada e acreditando que assim seria, viveu toda a sua vida fielmente ao lado de João Romão e sempre se comportou como escrava na dedicação ao trabalho. Trabalhava de domingo a domingo e nunca se queixava de seus afazeres. Confiou cegamente em 
João Romão e não podendo suportar a traição, ela se mata na cena final do livro. 

Rita Baiana é uma mulata de cabelo crespo e reluzente, odor sensual de trevos, quadril atrevido e rijo, dentes claros e brilhantes. Tinha um caso com Firmo e, às vezes, saía também com outros homens. Envolve-se com Jerônimo e depois que ele larga a esposa vão morar juntos num outro estaleiro. Mulher extremamente sensual, desembaraçada e que gostava muito de dançar, atraindo todos os olhares para si.

-
 Miranda é um português tão invejoso e ambicioso quanto seu vizinho João Romão. Tem um casamento infeliz e não pode suportar a felicidade alheia. Em
nome da sua inveja, traça objetivos para se tornar “melhor” do que João Romão e a prosperidade de seu cortiço. Mantém-se em seu casamento apenas pela questão financeira.

Com relação ao tempo, ele é trabalhado de maneira linear. A história se desenrola no Brasil do século XIX, sem precisão de datas. Há, no entanto, que ressaltar a relação do tempo com o desenvolvimento do cortiço e com o enriquecimento de João Romão. Pode-se dizer que o tempo é cronológico, o qual é contado no relógio, com horas, dias, anos, numa ordem linear de tempo. Temos, como exemplo, o fragmento a seguir: 
Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de moradores.” – Cap. I, p. 18.

Com relação ao espaço, temos que a narrativa transcorre no Rio de Janeiro, mais especificamente no bairro de Botafogo, onde se situa o cortiço de João Romão e o sobrado do Miranda e sua família. Com relação a este espaço físico, pode-se dizer que dois específicos são explorados na obra. O primeiro deles é o cortiço, amontoado de casebres mal-arranjados onde os pobres vivem. Seu cenário é descrito com todos os caracteres que representam sua sujeira e podridão, com a intenção crítica de mostrar a miséria do proletariado urbano. Esse espaço representa a mistura de raças e a promiscuidade das classes baixas (o que denota o aspecto sócio-cultural). Funciona como um organismo vivo. Junto ao cortiço estão a pedreira e a taverna do português João Romão.
Exemplificando este primeiro espaço: (…) aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão. Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de moradores.”Cap. I, p. 18.
Já o segundo espaço, que fica ao lado do cortiço, é o sobrado aristocratizante do comerciante Miranda e de sua família. O sobrado representa a burguesia ascendente do século XIX. Esses espaços fictícios são enquadrados no cenário do bairro de Botafogo, explorando a belíssima natureza local como meio determinante. Desta maneira, o sol abrasador do litoral americano funciona como elemento que corrompe o homem local.
Exemplificando este segundo espaço: (…) vendeu-se (…) um sobrado que ficava à direita da venda, separado desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou-o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado. Corrida uma limpeza geral no casarão, mudar-se-ia ele para lá com a família (…)” Cap. I, p. 18. 

Com relação ao foco narrativo, o narrador apresenta-se como de terceira pessoa, com narrador onisciente (que tem conhecimento de tudo), tendo poder total na estrutura do romance. Tenta comprovar, como se fosse um cientista, as influências do meio, da raça e do momento histórico.
Exemplificando este foco narrativo, pode-se destacar o seguinte fragmento: 
“ (…) os dois [Miranda e Dona Estela] passaram a dormir em quartos separados. Não comiam juntos, e mal trocavam entre si uma ou outra palavra constrangida (…) Odiavam-se. Cada qual sentia pelo outro um profundo desprezo (…) O nascimento de Zulmira veio agravar ainda mais a situação; a pobre criança (…) foi (…) um (…) isolador que se estabeleceu entre eles (…)”  - Cap. I, p. 18
(Grifos meus – os verbos destacados mostram que o narrador coloca-se em terceira pessoa, tratando os referidos personagens por ele(a)eles(as).Uma outra observação a fazer é que o narrador mostra-se em posição de conhecimento de todas as situações contidas no romance. Ele tem ciência de todos os fatos, lê a mente das personagens e sabe perfeitamente dos sentimentos de cada uma delas.) 


Os recursos narrativos utilizados pelo autor na obra são:

a) Mescla de discursos: popular X culto: Aluísio Azevedo mesclou no romance dois tipos de discurso, articulando, predominantemente, linguagem culta para o narrador e uma mais despojada e coloquial para as falas das personagens. O trecho seguinte possibilita o reconhecimento do discurso formal: 
“Travou-se (…) uma lata renhida e surda entre o português negociante de fazendas por atacado e o português negociante de secos e molhados. Aquele não se resolvia a fazer o muro do quintal, sem ter alcançado o pedaço de terreno que o separava do morro; e o outro, por seu lado, não perdia a esperança de apanhar-lhe ainda, pelo menos, duas ou três braças aos fundos da casa (…)” – Cap. I, p. 22
Para contrastar, nos diálogos das personagens, acentuam-se registros da fala coloquial, muitas vezes até usada de modo vulgar. Exemplos disso são as frases abaixo:
“Parece que tem fogo no rabo!” – Cap. III, p. 42;
“Com quem te esfregavas tu, sua vaca?!”
 – Cap. VIII, p. 81

b) Metáforas: Aluísio Azevedo faz uso de metáforas em sua obra. Para exemplificar, temos: 
“(…) viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma lama; paraíso de vermes, brejo de lodo quente e fumegante (…)”  – Cap. XXII, p. 202
c) Sinestesias: Em “O Cortiço” há uma minuciosa descrição de ambientes e personagens, da qual emergem elementos perceptíveis pelos sentidos, compondo um quadro de sons, cores, cheiros e formas. Pode-se ter como exemplo de sinestesia o seguinte fragmento: 
“Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra  planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da
Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.”  - Cap. VII, p. 63 (grifo meu)

Sobre os discursos, podemos exemplificar da seguinte forma:
Como discurso direto, tem-se:“— Que é isso, Miranda! Então! Estás agora a dar palha?...
  — O que eles querem é que encordoes!...
  — Saia daí papai!
  — Olhe alguma pedrada, esta gente é capaz de tudo!” 
– Cap. VII, p. 66

Como discurso indireto, tem-se: “ [Alexandre] apresentou-se […] e disse ao negociante que não era prudente atirar insultos […]” (grifos meus) – Cap. VII, p. 63


Como 
conclusãdessa obra, pode-se dizer que ela foi essencial para o entendimento da sociedade brasileira no final do século XIX, pois trouxe uma visão mais nítida dos problemas sociais que atravancavam o país. Essa obra denuncia uma organização econômica fraudulenta e desigual, tendo como traços temáticos o determinismo (o meio influencia o ser), o zoomorfismo (o tratamento dado às personagens é de animais propriamente ditos – “besta”, por exemplo), a sexualidade ostensiva (o homem é dominado por reações instintivas) e o darwinismo social (representado principalmente pela trajetória de ascensão social de João Romão). 


* 
Romancista, contista, cronista, diplomata, caricaturista e jornalista brasileiro, tendo escrito "O Cortiço", a mais conhecida obra do Naturalismo brasileiro.

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