quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Análise da crônica "Amor e outros males"

                              Amor e outros males                                                                            Rubem Braga

Uma delicada leitora me escreve: não gostou de uma crônica minha de outro dia, sobre dois amantes que se mataram. Pouca gente ou ninguém gostou dessa crônica; paciência. Mas o que a leitora estranha é que o cronista "qualifique o amor, o principal sentimento da humanidade, de coisa tão incômoda". E diz mais: "Não é possível que o senhor não ame, e que, amando, julgue um sentimento de tal grandeza incômodo".
Não, minha senhora, não amo ninguém; o coração está velho e cansado. Mas a lembrança que tenho de meu último amor, anos atrás, foi exatamente isso que me inspirou esse vulgar adjetivo – "incômodo". Na época eu usaria talvez adjetivo mais bonito, pois o amor, ainda que infeliz, era grande; mas é uma das tristes coisas desta vida sentir que um grande amor pode deixar apenas uma lembrança mesquinha; daquele ficou apenas esse adjetivo, que a aborreceu.
Não sei se vale a pena lhe contar que a minha amada era linda; não, não a descreverei, porque só de revê-la em pensamento alguma coisa dói dentro de mim. Era linda, inteligente, pura e sensível – e não me tinha, nem de longe, amor algum; apenas uma leve amizade, igual a muitas outras e inferior a várias.
A história acaba aqui; é, como vê, uma história terrivelmente sem graça, e que eu poderia ter contado em uma só frase. Mas o pior é que não foi curta. Durou, doeu e – perdoe, minha delicada leitora – incomodou.
Eu andava pela rua e sua lembrança era alguma coisa encostada em minha cara, travesseiro no ar; era um terceiro braço que me faltava, e doía um pouco; era uma gravata que me enforcava devagar, suspensa de uma nuvem. A senhora acharia exagerado se eu lhe dissesse que aquele amor era uma cruz que eu carregava o dia inteiro e à qual eu dormia pregado; então serei mais modesto e mais prosaico dizendo que era como um mau jeito no pescoço que de vez em quando doía como bursite. Eu já tive um mês de bursite, minha senhora; dói de se dar guinchos, de se ter vontade de saltar pela janela. Pois que venha outra bursite, mas não volte nunca um amor como aquele. Bursite é uma dor burra, que dói, dói, mesmo, e vai doendo; a dor do amor tem de repente uma doçura, um instante de sonho que mesmo sabendo que não se tem esperança alguma a gente fica sonhando, como um menino bobo que vai andando distraído e de repente dá uma topada numa pedra. E a angústia lenta de quem parece que está morrendo afogado no ar, e o humilde sentimento de ridículo e de impotência, e o desânimo que às vezes invade o corpo e a alma, e a "vontade de chorar e de morrer", de que fala o samba?
Por favor, minha delicada leitora; se, pelo que escrevo, me tem alguma estima, por favor: me deseje uma boa bursite.


Com relação ao texto acima, são válidas algumas considerações. 
Quanto à significação do texto, pode-se dizer que o cronista defende a ideia de que o amor é um sentimento incômodo, apresentando argumentos suficientes para justificar oi fato de considerá-lo assim.
Com relação à forma com que o autor se refere à leitora - "minha senhora" e "delicada leitora" -, o autor, ao utilizar tais expressões, deixa entrever uma ironia, mesmo que sutilmente, pelo fato de eles (autor e leitora) terem uma visão contraposta com relação ao "amor". 
Outra consideração a ser feita é que o autor deixa claro que ficou incomodado com o questionamento da leitora e, no decorrer do texto, procura justificar seu ponto de vista sobre o amor.

Ao analisarmos o trecho “Não é possível que o senhor não ame, e que, amando, julgue um sentimento de tal grandeza incômodo”, o autor usou aspas para indicar transcrição da fala da leitora, que demonstrou indignação com o comentário feito pelo autor em uma de suas crônicas. Houve, também, nessa frase, o uso do hiperônimo "sentimento", cujo hipônimo é o "amor". O termo "amor" está contido no "sentimento" e no significado de "sentimento" contém o "amor", pois todo "amor" é um "sentimento", mas nem todo "sentimento" é o "amor". 
Ao observarmos a oração “o amor, ainda que infeliz, era grande”, a parte destacada mantém com a outra
relação de concessão: a oração analisada é uma oração subordinada adverbial concessiva. Exprime uma
oposição em relação à oração principal (o amor era grande) sem negar que o fato nela enunciado indica, portanto, concessão.
Com relação à frase “Não sei se vale a pena lhe contar que a minha amada era linda (...)”, a expressão em
destaque significa “merecer o esforço”, ou seja, o autor quis dizer que não sabe se merece o esforço de contar à leitora o quão linda era sua amada.
No texto, a frase “era uma gravata que me enforcava devagar” dá ideia de algo muito incômodo: ao usar a frase citada, o autor quis dizer que sua última história de amor representou, para ele, algo muito incômodo pelas circunstâncias vivenciadas ao lado de sua amada.
No trecho “aquele amor era uma cruz que eu carregava o dia inteiro e à qual eu dormia pregado”, contém uma figura de linguagem que consiste no exagero intencional de uma expressão (hipérbole) para tornar a mensagem mais expressiva. O autor exagerou ao dizer que o amor era uma cruz que carregava o dia inteiro e à qual dormia pregado.
Além da hipérbole, há, no texto, outras figuras de linguagem. Uma delas é a metáfora, utilizada em "Bursite é uma dor burra": o termo "bursite" não significa literalmente "uma dor burra", mas sim um desconforto que se tem, uma dor, em que, em sua significação literal, o adjetivo "burra" não faz sentido algum.
Outra figura de linguagem que vale destacar é a metonímia, contida em "O coração está velho e cansado", em que o coração, órgão, não se sente velho nem cansado. O autor quer dizer, na verdade, que cansou-se de amar, que já viveu muitos anos e que, por isso, deixou de ter esse sentimento.

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